Centralizada em
Cristo
Todo estudo e meditação nas Escrituras devem nos
impulsionar em direção a Cristo, mesmo as que se baseiam em passagens do Antigo
Testamento, devem culminar na vida de Cristo, tanto para nós mesmos como para
pregarmos aos outros que não conhecem a mensagem do evangelho.
Para exemplificarmos o que foi afirmado acima,
gostaria de refletir sobre uma passagem baseada em Daniel 1.1 e 2. "No ano terceiro do reinado de
Jeoiaquim, rei de Judá, veio Nabucodonosor, rei de babilônia, a Jerusalém, e a
sitiou. E o Senhor entregou nas suas mãos a Jeoiaquim, rei de Judá, e uma parte dos
utensílios da casa de Deus, e ele os levou para a terra de Sinar, para a casa
do seu deus, e pôs os utensílios na casa do tesouro do seu deus".
Iniciamos nossa conversa abordando a questão da
relatividade dos princípios e verdades. A relação entre o cristianismo e o
relativismo moderno da verdade faz-nos lembrar o episódio bíblico da deportação
dos hebreus no período do cativeiro babilônico. O exílio foi um período de
muita perplexidade, mas também se tornou um momento de grandes desafios, como
nos lembra o salmista exilado: “ Como poderíamos cantar as canções do Senhor
numa terra estranha?” (Cf. Sl. 137.4). O rei Nabucodonosor, além de ter
deportado a elite judaica, despojou, por assim dizer, tudo o que estava no
templo (Cf. Dn. 1.1-2). Todos os
utensílios que simbolizavam a presença de Deus foram transportados para os
templos dos deuses babilônicos. Não podemos deixar de ressaltar a gravidade
desses fatos. De um lado, encontra-se o templo de Deus, do outro, os templos de
Marduque, o deus mais importante entre os vários deuses da Babilônia. Trata-se,
portanto, de dois cultos marcados por um contraste irredutível entre o
monoteísmo (um único Deus) e o politeísmo (vários deuses).
Enquanto o templo de Jerusalém era a casa de uma
única divindade, a saber, Deus, os templos da Babilônia eram dedicados a vários
deuses, sendo que o principal era Marduque. Talvez seja possível estabelecer
aqui uma correlação entre dois tipos de tensão: a tensão entre “singularidade
do cristianismo” e a “pluralidade das religiões modernas”. Mas antes,
precisamos averiguar a repercussão dos atos de Nabucodonosor ao deportar a
elite judaica, saquear os utensílios do templo e depois destruí-lo.
A noção de que a deportação foi total, deixando
apenas a terra vazia e despovoada, é errada. Arruinada sim, despovoada não. A
terra não estava de todo vazia e despovoada. Ainda havia hebreus vivendo entre
os escombros da cidade santa. Os que ali viviam, tinham diante de seus olhos
uma imagem semelhante a que Jesus teve, quando disse aos seus discípulos:
“Vocês estão vendo tudo isso? Eu lhes garanto que não ficará aqui pedra sobre
pedra!” (Mt. 24.2). Portanto, o que estamos considerando é a ruína de um povo.
O exército de Nabucodonosor destruiu Jerusalém. Todas as cidades fortificadas
no interior de Judá foram arrasadas e em muitos casos para não serem nunca mais
reconstruídas. Esse era o ambiente dos hebreus que, embora estivessem ainda
habitando a “terra santa”, não tinham diante de seus olhos, nada mais promissor
que as ruínas de Sião.
O ambiente dos que foram levados para a Babilônia
era o oposto. A visão era outra. Tudo muito bonito, belo, a arquitetura, a religião, a cultura, a língua,
enfim, tudo era muito diferente da tristeza da Jerusalém daqueles dias.
Diferente do sentimento dos hebreus que foram levados para Babilônia, não havia entre os babilônios outro
sentimento senão o de alegria diante das conquistas que Nabucodonosor lhes
proporcionava. E apesar de o contexto babilônico ser bastante promissor, é
inegável que os hebreus deportados traziam, estampados em seus rostos, vestes e
corações, as imagens das ruínas, o cheiro da destruição. Sem dúvida, traziam em
sua memória um passado glorioso (cf. Sl. 80.8-11), porém, encoberto por um
presente aterrador (cf. Sl. 80.12-13).
Entretanto, a despeito de onde estivessem, tanto os
desolados que ficaram em Jerusalém como os desolados que foram deportados para
a Babilônia carregavam no coração uma
ideia equivocada, mas real, de “abandono” de Javé. É até compreensível que na
mente daqueles homens e mulheres habitasse a terrível ideia de que Deus os havia
abandonado. É como se a desgraça lhes ofuscasse os olhos, a ponto de não mais
conseguirem ver e reconhecer a face do Senhor.
É perfeitamente compreensível o sentimento de
desamparo que tomou conta da mente e do coração dos hebreus diante desses tenebrosos
acontecimentos. Imagine que o que está sendo saqueado e depois destruído é
aquilo que é único e singular para os hebreus-
os utensílios juntamente com o
templo. Só que esse algo único e singular guarda em si toda a esperança de um
povo. Quando esse algo desaparece, a esperança dá lugar ao sentimento de
abandono e desamparo. Essa calamidade não deve de modo algum ser minimizada.
Porém, o fato é que Deus não os havia abandonado. Ele estava tão presente como
Cristo ao lado de seus discípulos, à margem de Tiberíades (Cf. Jo. 21.4)
Esse mesmo drama pode ser vivido em nosso tempo,
isto é, em pleno século 21!. Em momentos de ruína podemos ser incapazes de ver
os atos de Deus (cf. 2Rs. 6.14-17). Porém, são estes momentos difíceis que
permitem refletirmos sobre os fundamentos de nossa fé. Não somente isso. Tais
momentos nos desafiam a avaliar como a nossa percepção da presença de Deus
interfere em nossa certeza de sua presença. Hoje o que vemos em muitos lugares
é que a presença de Deus se justifica pelas bênçãos materiais, pelos carros,
casas, dinheiro, etc. Se um cristão de hoje passa por momentos como este, à
qual não há nada que “justifique” a presença de Deus, tais como Jó viveu, é
motivo para se questionar a presença de Deus. Como fez sua mulher.
A ausência de Deus não é e nunca será possível,
pois Ele está em todo lugar. Apesar de nossa impossibilidade de percebermos a presença de Deus de forma
literal, somente a ideia de que Deus está
ausente pode nos levar a uma encruzilhada: a possibilidade de buscarmos
respostas em uma espiritualidade falsa ou a possibilidade de buscarmos viver
uma espiritualidade mais profunda, que vá além das nossas emoções, e é claro,
da maneira como encaramos as tragédias da vida. Por isso, acredito que a
impossibilidade dos deportados em perceber a presença de Deus na Babilônia veio
acompanhada de uma possibilidade de viverem uma espiritualidade que nunca
viveram antes. As tragédias sempre nos levam a refletir. Nesse ponto, há uma
curiosidade chinesa que pode nos ajudar aqui, é a seguinte: a mesma grafia que
se usa no dialeto chinês para a palavra “crise”, também pode ser usada para
significar “oportunidade”, ou seja, os hebreus vivendo neste momento de crise
espiritual, também podiam olhar para este momento como oportunidade de mudança,
de transformação de uma religião nominal, litúrgica, para algo mais profundo.
Sabemos que Israel vivia em constante conflito e
deslizes com sua fé. Alguns deles eram, inclusive, resultados da influência do
culto politeísta dos pagãos. Mas apesar desses deslizes, a religião dos hebreus
sempre foi de natureza monoteísta. Embora não houvesse uma doutrina monoteísta,
como temos as doutrinas e confissões da igreja cristã, a religião dos hebreus
se baseava na existência de um único Deus, declarando que os deuses pagãos eram
“entidades negativas” ou “não-deuses”, sendo assim, como Israel explicaria toda
essa tragédia, se fé aparentemente ruíra diante dos golpes mortais de uma
potência pagã? Será que os deuses babilônicos eram falsos ou deuses realmente poderosos?
É claro que os hebreus não poderiam
continuar o seu culto como se nada tivesse acontecido. Era necessário
evidenciar sua fé diante das grandes nações e seus respectivos deuses. E mais do que isto. Os hebreus para
si mesmos, precisavam refletir sobre sua fé à luz daquela experiência, caso
contrário, ela esfriaria.
Eis o cenário que se abre diante de nós. Trágico?
Sem dúvida. Entretanto, a gravidade disso estende-se para além da destruição do templo, pois o que
Nabucodonosor fez com os utensílios do templo? Como se não bastasse saquear e
destruir o santuário, faltava reduzir o Deus único dos hebreus à mera condição
de um deus entre muitos deuses. Ele fez, ao levar os utensílios do templo de Jerusalém para a casa do seu
deus, o templo de Marduque. Em outras palavras, ele quis igualar Deus com os
outros deuses babilônicos, Nabucodonosor estava dizendo aos hebreus que Javé
não passava de mais um deus em vez de o único e verdadeiro Deus. E mais: o rei
da Babilônia estava colocando em cheque a afirmação do texto sagrado de
Deuteronômio 7.9: “Saibam, portanto, que o SENHOR, o seu Deus, é Deus; ele é o
Deus fiel, que mantém a aliança e a bondade por mil gerações daqueles que o
amam e obedecem aos seus mandamentos”. (NVI – grifo meu).
Vemos portanto, que o que estava sob ataque era a
fé na unidade e a singularidade de Deus. A noção que os hebreus tinham de seu
Deus era diferente no mundo antigo, pois todas as religiões antigas praticavam
a adoração a vários deuses, o que para o hebreu era um verdadeiro desafio, pois
era mais fácil acreditar na pluralidade de deuses e não na singularidade de uma
divindade. Da mesma forma, ao apontar
para a um único Deus, o cristianismo não está tentando dizer que é uma obra
acabada, isto é, uma obra da qual possamos dizer: Aleluia! Acabou. Agora é só
esperar Jesus voltar. Não. O cristianismo é uma constante vivência de um
compromisso fiel com a mensagem do evangelho, a única e exclusiva verdade em
meio ao relativismo intolerante de nosso tempo. Portanto, essa reflexão sobre o
texto de Daniel 1.1,2 nos leva a traçar
um paralelo com o cristianismo vivido em nossos dias. Que tipo de crente eu
sou? Será que eu consigo como Daniel ficar puro, em meio a uma sociedade
corrompida? Será que somos capazes de recusar os pratos saborosos oferecidos?
Mas afinal, que verdade devemos buscar? De que
verdade estamos falando? Os gregos que habitavam na Grécia antiga davam o nome
de aletheia àquilo que comumente chamamos de verdade. Aletheia é uma palavra
grega que quer dizer “ aquilo que não podemos esquecer”. Se Cristo é a verdade
da minha fé, então, Ele é aquele que não pode jamais ser esquecido. Tal
esquecimento seria fatal não apenas à fé, mas também à liberdade que adquirimos
por meio de Cristo. Ora se a sociedade esqueceu de Jesus Cristo, ela esqueceu
justamente a verdade que de fato nos tornou livres: “e conhecereis a verdade e
a verdade vos libertará” (Jo. 8.32). Portanto, a verdade do cristianismo não é
um pensamento filosófico, uma abstração, algo que fica somente no nível do que
eu penso. A verdade cristã tem pele, suor, sangue, lágrimas, fome, sede. Essa
verdade, como a Escritura nos diz, é Jesus Cristo, a verdadeira imagem de Deus.
Aqueles que amam a Deus sobre todas as coisas e que
o buscam de todo o coração, vivem atualmente em uma Babilônia. É claro que não
estamos falando agora da mesma Babilônia de Nabucodonosor. Estamos falando da
nossa Babilônia, o mundo em que vivemos. Pedro já nos alertou dizendo que aqui,
neste mundo, somos peregrinos e estrangeiros (cf. 1Pe. 2.11); Paulo também
afirmou algo semelhante, quando disse que a nossa pátria é celeste e não
terrestre (cf. Fp. 3.20). Diante do testemunho desses homens, a quem mais
precisaríamos ouvir para acreditarmos? Ora o próprio Cristo já nos disse que
não somos deste mundo. Mas se não somos daqui, então, o que estamos fazendo
aqui? Não seria melhor voltar os nossos olhos para a nossa pátria celeste e
marchar retumbantes em direção a ela? Jesus provavelmente responderia com um
retumbante Não!! E em relação à questão anterior, ele provavelmente nos diria:
“não me peçam para que os tire do mundo, mas que os livre do mal. Vocês não são
do mundo, como eu do mundo não sou. Eu santifiquei vocês na verdade, mas, assim
como Deus me enviou ao mundo, eu também os envio, em favor dos que não me conhecem,
para que por meio de vocês eles me conheçam e sejam santificados pela verdade”
(paráfrase de Jo. 15-19)
Acima de tudo, não devemos nunca nos esquecer de
que a nossa fé não é provada fora do mundo, mas sim no mundo. Este mundo
moderno que representa um grande desafio para a nossa fé. Resta saber se nós –
cristãos que vivemos na Babilônia – entoaremos o cântico do Senhor ou
penduraremos nossas harpas no primeiro salgueiro que encontrarmos à nossa
frente (Sl. 137.2)
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