quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

FUNDAMENTO DA VERDADE - parte II


Centralizada em Cristo


Todo estudo e meditação nas Escrituras devem nos impulsionar em direção a Cristo, mesmo as que se baseiam em passagens do Antigo Testamento, devem culminar na vida de Cristo, tanto para nós mesmos como para pregarmos aos outros que não conhecem a mensagem do evangelho.

Para exemplificarmos o que foi afirmado acima, gostaria de refletir sobre uma passagem baseada em Daniel 1.1 e 2. "No ano terceiro do reinado de Jeoiaquim, rei de Judá, veio Nabucodonosor, rei de babilônia, a Jerusalém, e a sitiou. E o Senhor entregou nas suas mãos a Jeoiaquim, rei de Judá, e uma parte dos utensílios da casa de Deus, e ele os levou para a terra de Sinar, para a casa do seu deus, e pôs os utensílios na casa do tesouro do seu deus". 

Iniciamos nossa conversa abordando a questão da relatividade dos princípios e verdades. A relação entre o cristianismo e o relativismo moderno da verdade faz-nos lembrar o episódio bíblico da deportação dos hebreus no período do cativeiro babilônico. O exílio foi um período de muita perplexidade, mas também se tornou um momento de grandes desafios, como nos lembra o salmista exilado: “ Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estranha?” (Cf. Sl. 137.4). O rei Nabucodonosor, além de ter deportado a elite judaica, despojou, por assim dizer, tudo o que estava no templo (Cf. Dn. 1.1-2). Todos os utensílios que simbolizavam a presença de Deus foram transportados para os templos dos deuses babilônicos. Não podemos deixar de ressaltar a gravidade desses fatos. De um lado, encontra-se o templo de Deus, do outro, os templos de Marduque, o deus mais importante entre os vários deuses da Babilônia. Trata-se, portanto, de dois cultos marcados por um contraste irredutível entre o monoteísmo (um único Deus) e o politeísmo (vários deuses).

Enquanto o templo de Jerusalém era a casa de uma única divindade, a saber, Deus, os templos da Babilônia eram dedicados a vários deuses, sendo que o principal era Marduque. Talvez seja possível estabelecer aqui uma correlação entre dois tipos de tensão: a tensão entre “singularidade do cristianismo” e a “pluralidade das religiões modernas”. Mas antes, precisamos averiguar a repercussão dos atos de Nabucodonosor ao deportar a elite judaica, saquear os utensílios do templo e depois destruí-lo.

A noção de que a deportação foi total, deixando apenas a terra vazia e despovoada, é errada. Arruinada sim, despovoada não. A terra não estava de todo vazia e despovoada. Ainda havia hebreus vivendo entre os escombros da cidade santa. Os que ali viviam, tinham diante de seus olhos uma imagem semelhante a que Jesus teve, quando disse aos seus discípulos: “Vocês estão vendo tudo isso? Eu lhes garanto que não ficará aqui pedra sobre pedra!” (Mt. 24.2). Portanto, o que estamos considerando é a ruína de um povo. O exército de Nabucodonosor destruiu Jerusalém. Todas as cidades fortificadas no interior de Judá foram arrasadas e em muitos casos para não serem nunca mais reconstruídas. Esse era o ambiente dos hebreus que, embora estivessem ainda habitando a “terra santa”, não tinham diante de seus olhos, nada mais promissor que as ruínas de Sião.

O ambiente dos que foram levados para a Babilônia era o oposto. A visão era outra. Tudo muito bonito, belo, a  arquitetura, a religião, a cultura, a língua, enfim, tudo era muito diferente da tristeza da Jerusalém daqueles dias. Diferente do sentimento dos hebreus que foram levados para Babilônia,  não havia entre os babilônios outro sentimento senão o de alegria diante das conquistas que Nabucodonosor lhes proporcionava. E apesar de o contexto babilônico ser bastante promissor, é inegável que os hebreus deportados traziam, estampados em seus rostos, vestes e corações, as imagens das ruínas, o cheiro da destruição. Sem dúvida, traziam em sua memória um passado glorioso (cf. Sl. 80.8-11), porém, encoberto por um presente aterrador (cf. Sl. 80.12-13).

Entretanto, a despeito de onde estivessem, tanto os desolados que ficaram em Jerusalém como os desolados que foram deportados para a Babilônia carregavam  no coração uma ideia equivocada, mas real, de “abandono” de Javé. É até compreensível que na mente daqueles homens e mulheres habitasse a terrível ideia de que Deus os havia abandonado. É como se a desgraça lhes ofuscasse os olhos, a ponto de não mais conseguirem ver e reconhecer a face do Senhor.

É perfeitamente compreensível o sentimento de desamparo que tomou conta da mente e do coração dos hebreus diante desses tenebrosos acontecimentos. Imagine que o que está sendo saqueado e depois destruído é aquilo que é único e singular para os hebreus-  os utensílios  juntamente com o templo. Só que esse algo único e singular guarda em si toda a esperança de um povo. Quando esse algo desaparece, a esperança dá lugar ao sentimento de abandono e desamparo. Essa calamidade não deve de modo algum ser minimizada. Porém, o fato é que Deus não os havia abandonado. Ele estava tão presente como Cristo ao lado de seus discípulos, à margem de Tiberíades (Cf. Jo. 21.4)

Esse mesmo drama pode ser vivido em nosso tempo, isto é, em pleno século 21!. Em momentos de ruína podemos ser incapazes de ver os atos de Deus (cf. 2Rs. 6.14-17). Porém, são estes momentos difíceis que permitem refletirmos sobre os fundamentos de nossa fé. Não somente isso. Tais momentos nos desafiam a avaliar como a nossa percepção da presença de Deus interfere em nossa certeza de sua presença. Hoje o que vemos em muitos lugares é que a presença de Deus se justifica pelas bênçãos materiais, pelos carros, casas, dinheiro, etc. Se um cristão de hoje passa por momentos como este, à qual não há nada que “justifique” a presença de Deus, tais como Jó viveu, é motivo para se questionar a presença de Deus. Como fez sua mulher.

A ausência de Deus não é e nunca será possível, pois Ele está em todo lugar. Apesar de nossa impossibilidade  de percebermos a presença de Deus de forma literal, somente a ideia de que Deus está  ausente pode nos levar a uma encruzilhada: a possibilidade de buscarmos respostas em uma espiritualidade falsa ou a possibilidade de buscarmos viver uma espiritualidade mais profunda, que vá além das nossas emoções, e é claro, da maneira como encaramos as tragédias da vida. Por isso, acredito que a impossibilidade dos deportados em perceber a presença de Deus na Babilônia veio acompanhada de uma possibilidade de viverem uma espiritualidade que nunca viveram antes. As tragédias sempre nos levam a refletir. Nesse ponto, há uma curiosidade chinesa que pode nos ajudar aqui, é a seguinte: a mesma grafia que se usa no dialeto chinês para a palavra “crise”, também pode ser usada para significar “oportunidade”, ou seja, os hebreus vivendo neste momento de crise espiritual, também podiam olhar para este momento como oportunidade de mudança, de transformação de uma religião nominal, litúrgica, para algo mais profundo.

Sabemos que Israel vivia em constante conflito e deslizes com sua fé. Alguns deles eram, inclusive, resultados da influência do culto politeísta dos pagãos. Mas apesar desses deslizes, a religião dos hebreus sempre foi de natureza monoteísta. Embora não houvesse uma doutrina monoteísta, como temos as doutrinas e confissões da igreja cristã, a religião dos hebreus se baseava na existência de um único Deus, declarando que os deuses pagãos eram “entidades negativas” ou “não-deuses”, sendo assim, como Israel explicaria toda essa tragédia, se fé aparentemente ruíra diante dos golpes mortais de uma potência pagã? Será que os deuses babilônicos eram falsos ou deuses realmente poderosos? É claro que os hebreus  não poderiam continuar o seu culto como se nada tivesse acontecido. Era necessário evidenciar sua fé diante das grandes nações e seus respectivos  deuses. E mais do que isto. Os hebreus para si mesmos, precisavam refletir sobre sua fé à luz daquela experiência, caso contrário, ela esfriaria.

Eis o cenário que se abre diante de nós. Trágico? Sem dúvida. Entretanto, a gravidade disso estende-se para além  da destruição do templo, pois o que Nabucodonosor fez com os utensílios do templo? Como se não bastasse saquear e destruir o santuário, faltava reduzir o Deus único dos hebreus à mera condição de um deus entre muitos deuses. Ele fez, ao levar os utensílios  do templo de Jerusalém para a casa do seu deus, o templo de Marduque. Em outras palavras, ele quis igualar Deus com os outros deuses babilônicos, Nabucodonosor estava dizendo aos hebreus que Javé não passava de mais um deus em vez de o único e verdadeiro Deus. E mais: o rei da Babilônia estava colocando em cheque a afirmação do texto sagrado de Deuteronômio 7.9: “Saibam, portanto, que o SENHOR, o seu Deus, é Deus; ele é o Deus fiel, que mantém a aliança e a bondade por mil gerações daqueles que o amam e obedecem aos seus mandamentos”. (NVI – grifo meu).

Vemos portanto, que o que estava sob ataque era a fé na unidade e a singularidade de Deus. A noção que os hebreus tinham de seu Deus era diferente no mundo antigo, pois todas as religiões antigas praticavam a adoração a vários deuses, o que para o hebreu era um verdadeiro desafio, pois era mais fácil acreditar na pluralidade de deuses e não na singularidade de uma divindade. Da mesma forma,  ao apontar para a um único Deus, o cristianismo não está tentando dizer que é uma obra acabada, isto é, uma obra da qual possamos dizer: Aleluia! Acabou. Agora é só esperar Jesus voltar. Não. O cristianismo é uma constante vivência de um compromisso fiel com a mensagem do evangelho, a única e exclusiva verdade em meio ao relativismo intolerante de nosso tempo. Portanto, essa reflexão sobre o texto de Daniel 1.1,2  nos leva a traçar um paralelo com o cristianismo vivido em nossos dias. Que tipo de crente eu sou? Será que eu consigo como Daniel ficar puro, em meio a uma sociedade corrompida? Será que somos capazes de recusar os pratos saborosos oferecidos?

Mas afinal, que verdade devemos buscar? De que verdade estamos falando? Os gregos que habitavam na Grécia antiga davam o nome de aletheia àquilo que comumente chamamos de verdade. Aletheia é uma palavra grega que quer dizer “ aquilo que não podemos esquecer”. Se Cristo é a verdade da minha fé, então, Ele é aquele que não pode jamais ser esquecido. Tal esquecimento seria fatal não apenas à fé, mas também à liberdade que adquirimos por meio de Cristo. Ora se a sociedade esqueceu de Jesus Cristo, ela esqueceu justamente a verdade que de fato nos tornou livres: “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo. 8.32). Portanto, a verdade do cristianismo não é um pensamento filosófico, uma abstração, algo que fica somente no nível do que eu penso. A verdade cristã tem pele, suor, sangue, lágrimas, fome, sede. Essa verdade, como a Escritura nos diz, é Jesus Cristo, a verdadeira imagem de Deus.

Aqueles que amam a Deus sobre todas as coisas e que o buscam de todo o coração, vivem atualmente em uma Babilônia. É claro que não estamos falando agora da mesma Babilônia de Nabucodonosor. Estamos falando da nossa Babilônia, o mundo em que vivemos. Pedro já nos alertou dizendo que aqui, neste mundo, somos peregrinos e estrangeiros (cf. 1Pe. 2.11); Paulo também afirmou algo semelhante, quando disse que a nossa pátria é celeste e não terrestre (cf. Fp. 3.20). Diante do testemunho desses homens, a quem mais precisaríamos ouvir para acreditarmos? Ora o próprio Cristo já nos disse que não somos deste mundo. Mas se não somos daqui, então, o que estamos fazendo aqui? Não seria melhor voltar os nossos olhos para a nossa pátria celeste e marchar retumbantes em direção a ela? Jesus provavelmente responderia com um retumbante Não!! E em relação à questão anterior, ele provavelmente nos diria: “não me peçam para que os tire do mundo, mas que os livre do mal. Vocês não são do mundo, como eu do mundo não sou. Eu santifiquei vocês na verdade, mas, assim como Deus me enviou ao mundo, eu também os envio, em favor dos que não me conhecem, para que por meio de vocês eles me conheçam e sejam santificados pela verdade” (paráfrase de Jo. 15-19)

Acima de tudo, não devemos nunca nos esquecer de que a nossa fé não é provada fora do mundo, mas sim no mundo. Este mundo moderno que representa um grande desafio para a nossa fé. Resta saber se nós – cristãos que vivemos na Babilônia – entoaremos o cântico do Senhor ou penduraremos nossas harpas no primeiro salgueiro que encontrarmos à nossa frente (Sl. 137.2)


Robson Ferreira da Silva
Pr. Robson Ferreira
Pastor da Igreja Cristã Ibero Americana
Teólogo e professor de Filosofia

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